Conversa ao
pé do fogo.
A última
Estação de trem.
Tempos são passados. Só as
lembranças ficaram. Tempos bons que não voltam mais. Ainda fazia minhas
jornadas e meus acampamentos a “escoteira”, para quem não sabe significa aquele
que anda só. Era um apaixonado por ficar só, sem dividir o vento no rosto, a
sombra de uma pitangueira, ou o remanso frio de um riacho. Egoísta? Não. Junto
aos meus amigos fizemos belos acampamentos, belas excursões que também tem seu
lugarzinho em um cantinho da minha memória. Meus problemas eu resolvia assim.
Uma mochila, um bornal, uma forquilha, ração B, uma rota e pé na estrada.
Adorava. Muitas vezes sem barracas. Montar uma cabana, um banquinho, um fogo
estrela, um local privilegiado onde a vista pudesse deslumbrar o inatingível.
Quantas vezes? Muitas. Paradas longínquas, picos saudosos, vales queridos, uma
jangada a descer um rio desconhecido.
Muitas histórias. Várias que
um dia quem sabe irei contando uma a uma. Desta não esqueço. Aconteceu no
início da década de sessenta. Bandeiras ao vento e lá ia eu. Diziam ser uma
floresta virgem onde poucos entraram. Meu habitat. Um trem, saltar sorrindo na “boca
do túnel”, uma trilha, e a floresta linda a convidar para conhecê-la. Dois
dias. Animais enormes, pássaros floridos e cantantes aos milhares, corujas
buraqueiras espantadas com meu cantar noturno a beira de um pequeno fogo
naquela clareira amiga. Os ruídos da noite a estalar na audição de um Velho
mateiro. Vida sublime. Sonhos refeitos, alegre pela mente fértil hora da meia
volta. Um retorno sem faltar um banho em um riacho que jorrava cascatas com
suas águas nas pedras brancas criando espumas gostosas para afundar e levantar
sentindo o sabor daquelas águas que nunca foram tocadas.
Tudo que é bom eu sei não
dura para sempre. Já me disseram que nada é para sempre. O retorno sempre é
tristonho. Uma pequena estação. Não era uma cidade, quem sabe um arraial. Meia
dúzia de casas. Só o trem expresso não para. Os outros ficam ali a soltar
fumaça na chaminé de uma Baldwin que nunca se cansava. Cheguei cedo. Gostava de
ver o andar do Chefe da Estação. Educado. - Boa tarde! E tirava o quepe como a
me saudar sem me conhecer. Ao lado uma mesa com a parafernália eletromagnética
que Morse um dia inventou, as mensagens enviadas pelo telegrafista percorriam
como correio eletrônico os milhares de quilômetros daquela ferrovia sem fim. Contaram-me
que elas davam a volta ao mundo. Outros que foram até o fim do mundo! Eu podia
ouvir os sinais curtos e longos, pois um dia quando criança eu enfrentei a
batalha de ser um Sinaleiro. Sentado em um banco na plataforma da estação eu
esperava. Não tinha pressa. Nunca tive. Muitas vezes um olhar corre mais rápido
que um raio no céu. A vista fora o rio
caudaloso era comum após as diversas linhas de ida e volta.
A plataforma vazia. O trem que
subia o rio chegou mansamente. Não era o meu. Eu iria descer o rio. O Chefe da
Estação com seu arco a dar suas instruções ao maquinista que treinado não teve
duvidas para enlaçar. O barulho quieto da fornalha soltando fumaça e ar quente.
Eu adorava aquilo. Estava ali sentado como hipnotizado com a beleza do trem de
ferro que sumiu para sempre nas esquinas da vida. Foi então que avistei um
casal. Jovens. Parados em frente à entrada do vagão de primeira classe. Um
olhando para o outro. Não diziam nada. Ela só tinha olhos para ele. Encharcados
de lágrimas de amor. Ele tristonho também não tirava os olhos dela. – Eu volto
para te buscar ele disse. Ela chorava baixinho. – Nunca vou esquecer-me de você
meu amor. O último apito, um beijo simples, um roçar de lábios sedentos que não
queriam se separar.
O trem deslizando sobre os
trilhos se despedia da estação sorrindo ao pensar que outra lá ao longe estava
à espera dele. Um último adeus. Ele
correu e subiu nos degraus de seu vagão. Ficou ali de mãos estendidas como a
dizer um adeus choroso para sempre. Ela sabia disto. Sabia que ele não iria
voltar. Em pé olhava o trem apitando até sumir de vista na curva do rio. Um
silêncio tomou conta da plataforma. Eu só ouvia o tic tac do telegrafo e os
soluços da bela moça que havia perdido seu amor. Eu nada dizia. Não tinha nada
para dizer. Ela estática não saia do lugar. Perdidos em uma estação de trem o
mundo dela desmoronava. O meu chorava com ela. Ela se virou e me viu. Seus
olhos estavam marejados de lágrimas. Eu de calças curtas com meu chapelão
fiquei em pé. Queria me solidarizar. Não sabia como fazer. Ela deu um pequeno
sorriso levantando o braço dizendo baixinho “Sempre Alerta”. Respondi do mesmo
modo em posição de sentido. Lentamente ela se foi para seu destino.
De novo a estação vazia. O sol
do outro lado do rio teimava em se esconder na montanha. Não havia vento, nem
uma leve brisa para trazer alguma notícia do meu trem. Sentei novamente e
deixei minha mente viajar por este mundo de Deus. O Chefe do Trem se aproximou.
– Um atraso de quatro horas. O Trem que subia desencarrilhou. Muitos feridos. O
Trem que iria descer não tinha como passar. Não disse nada. Não tinha pressa.
Minha mente corria sobre os trilhos a procurar o trem que se foi. - Será que
ele sobreviveu? Sem resposta. E ela? Como avisar que seu amor poderia ter ido
para o outro lado da vida? – Não tem como dizer. Ela se foi para sua morada
sonhando com seu amor e sabendo que ele nunca mais iria voltar. Quem sabe é
melhor assim. Dormitei no banco da estação. A noite chegou. A plataforma escura
deu para ver alguns trovões no céu.
A chuva chegou de mansinho. Não
havia mais trovões e nem raios no céu. Eu gosto do som da chuva. Ela me trás
uma paz e tranquilidade que revigora. Ao longe um apito do trem. Era o meu que
chegava. Como um pássaro gigante sobre trilhos adentrou na estação perdida de
um trecho qualquer. Um retorno sem consequências. Na minha morada meu amor
dormia. Entrei de mansinho. Fui olhar meus filhos que adormecidos sonhavam com
anjos do céu. Abracei minha amada de muitas vidas que estava ali ao meu lado.
Ela sorriu. Pensei no amor da outra que tinha ido para sempre. Sina marcada.
Destino escrito no livro da vida. Nada do que tem de ser muda. Sonhos que não
foram vividos. Estrelas piscantes que se mantém no universo através dos tempos.
Esperanças que nunca se acabam. Ainda deitado com as mãos entrelaçadas no peito
eu lembrei-me de um poema – “Gota d’água brilhante, ainda suspenso num fio...
Quando o sol quente a encontrou, partida que não teve o adeus de um lenço,
história antiga que não tem mais senso, livro que o vento sem querer fechou”!
Nota – J.G de Araújo
Jorge escreveu centenas de poemas. A estrofe escrita no final do conto é de seu
poema Carta Inútil. Por sinal um dos mais bonitos que escreveu.
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