"Diga-me com
quem andas e dir-te-ei [que língua, a nossa!] quem és. Pois é: Judas andava com
Cristo. Cristo andava com Judas".
Lendas
escoteiras.
Judas...
Da galileia.
Existem acasos e ocasos. Ocasos
porque foi seguindo um belo por do sol e acaso porque sem querer fui parar em
Galileia. Don Janvier de Waldívian me procurou um dia. Osvaldo eu estou
precisando achar bons curtumes para me fornecer boas “vaquetas” você sabe,
aqueles couros curtidos e preparados à mão. São para calçados finos de uma fábrica
em Perúgia na Itália. Disseram-me que são calçados especiais e estão à procura
de bons couros. Como sócios podemos ganhar algum. Ideia na cabeça pé no caminho
e lá fui eu por informações encontrar o Curtume do Salgado em Tainhomim. Na
época tinha uma vespa que mais quebrava que andava. Disseram-me que não era
longe, uns duzentos e trinta quilômetros de estrada de chão batido. Isto se
fosse pela serra da Bodoqueira. Quatro horas depois a pobre da vespa começou a
pipocar. Vi uma estradinha pequena e uma placa – Galileia, seis quilômetros – A
vespa aguentou firme até lá. Anoitecia. Cidadezinha deserta. Um guardinha me
mostrou a pensão da Dona Inês. Melhor pernoitar. Amanhã consigo algum
eletricista para ver o que tem a vespinha.
Não
vi a Dona Inês. Um garoto de uns quinze anos me atendeu. Um quartinho simples e
disse-me que o jantar seria até às oito da noite. Banho no chuveiro do
corredor, e lá fui eu para o restaurante. Pequeno, oito ou dez mesas. Apenas eu
de hospede na hora. Sentei e logo trouxeram uns paizinhos deliciosos. Depois
uma sopa de cebola estupenda. Ainda trouxeram um arroz solto, feijão preto e
costelinhas de porco frita com torresmo. Deus do céu! Eram quase oito da noite
e aquele manjar dos deuses iriam me fazer mal e muito mal. Mas dizem que
escoteiros são gulosos e não medem as consequências. Comia gulosamente bebericando
uma cervejinha e uma senhora escura, gorda, cabelos presos por um lenço azul e
de uma simpatia tremenda sentou-se ao meu lado. – Olá, sou a Inês. Seja bem
vindo a minha humilde pensão! Simpática. Muito. – Já conhecias Galileia? – Não
eu disse. – Aqui já foi uma bela cidade. Chegamos a ter mais de trinta mil
habitantes. Hoje? – Nem oito mil e a cada dia mais e mais moradores se mudando.
-
Fiquei ali ouvindo sua história sobre a cidade. – Olhe, ela disse – A mais de
quarenta anos Galileia crescia a olhos vistos. Tínhamos quatro olarias, um
enorme curtume e o Prefeito pretendia montar uma indústria têxtil e uma
malharia. Foi nesta época que Judas da Galileia nasceu. A Parteira saiu
correndo ao ver a marca de corda em seu pescoço. Seus pais arregalaram os
olhos. Logo o povo todo da cidade sabia. O tabelião Juventino benzeu o menino,
mas aceitou registrá-lo como Judas da Galileia. O porquê sua mãe escolheu este
nome ninguém sabia. Judas cresceu se escondendo nas sombras da cidade. A
meninada quando o via saia correndo atrás gritando Judas! Judas! Traidor de
Jesus! – Quando ele fez dezesseis anos um dia na Rua do Caroço ele parou –
Virou para a molecada, botou a língua para fora, dizem alguns que mais de meio
metro e deu um urro tão grande que todos correram como corre o diabo da cruz.
Deste dia em diante ele andava no meio da rua e ninguém aparecia nem para
olhá-lo. As janelas fechavam a sua passagem.
Quando ele fez vinte anos queria ir embora da cidade. Não conseguia
emprego. Uma tarde uma turma de escoteiros chegou à cidade de bicicleta. Eram
uns doze aparentando quinze a dezessete anos. Armaram barracas no campinho do
Zé das Coisas e atraíram atenção de boa parte da meninada. Judas da Galileia
também foi lá. Um dos escoteiros o chamou para jantar com eles. Não perguntaram
da marca de seu pescoço, não perguntaram nada. O trataram muito bem. Foi à
primeira vez em sua vida que Judas da Galileia foi bem tratado. Até seus pais
não conversavam com ele. Judas da Galileia chorou muito quando eles foram
embora. Foram dois dias os mais lindos que teve em sua vida. Deixaram com ele
dois livros que disseram ser do fundador. Escotismo para Rapazes e o Guia do
Chefe Escoteiro. Judas da Galileia ficou uma semana lendo os livros. Leu uma,
duas, três e até quatro vezes.
Judas da Galileia queria ser Escoteiro. Sonhava ser Escoteiro. Na sua
cidade seria difícil. Não tinha grupo e ninguém interessado em organizar um. Só
havia uma solução. Ele mesmo fundar um. Mas como? – Dona Inês me cativava com
sua narrativa. Era uma emérita contadora de histórias. Sabia como falar, como
mostrar e seus gestos eram perfeitos. – Sabe Seu Osvaldo, eu nunca me aproximei
de Judas da Galileia. Eu tinha medo. Achava que ele podia ser o próprio Judas
reencarnado. O traidor de Jesus. Mas ele me procurou um dia. Olhou-me com uns
olhos tão chorosos que não pude dizer não. – Pediu se meu filho o Florindo
podia participar. Chamei florindo e ele de cabeça baixa concordou. Outros pais
ficaram sabendo. Ele conseguiu oito meninos. Andava com eles para todo lado.
Marchando, fazendo acampamentos, fazendo nós, sinais, tinham umas bandeirolas
que se divertiam na praça e assustar as moçoilas com os recados que iam e viam
dos quatro cantos da cidade.
-
Lembro bem que foi em um domingo a tarde que Anselmo Três Dedos chegou à cidade
com mais de vinte bandidos. Cercaram tudo. Prenderam o delegado, o prefeito, o
juiz e mais oito ordenanças na cadeia local. Vários bandidos deram ordens para ninguém
sair de casa. Se uma janela se abrisse eles entravam e matavam todo mundo. Um
medo geral. O gerente do Banco do Brasil foi obrigado a abrir a agencia e o
cofre. Foi nesta hora que Judas da Galileia adentrou a cidade com seus oitos
escoteiros vindo de um acampamento. Notou a movimentação dos bandidos. Mandou
os escoteiros correrem para suas casas. Anselmo Três Dedos o viu parado em
frente à fonte da praça. Gritou para ele correr. Ele não correu. Devagar com
seu olhar mortífero se dirigiu até a onde estava Anselmo Três Dedos. Colocou a
mão em sua testa. Anselmo gritou. Um grito horrível. Mesmo assim puxou o
gatilho do seu quarenta e cinco. Seis tiros. Judas da Galileia continuou
imóvel. Anselmo Três dedos caiu morto. Parecia que um raio o matou. Estava
queimado feito carvão.
Coloquei os braços na mesa. Parei de comer. Olhava sem tirar os olhos de
Dona Inês. – Ela continua séria, contando sua história infernal. – Os bandidos
que assistiram aquilo saíram correndo da cidade. Não ficou ninguém. Judas da
Galileia foi devagar até a praça e sentou ali, naquele banco amarelo. – Olhei
pela janela e vi o banco – Todos os políticos vieram abraçar Judas da Galileia.
Mas ele estava sentado, calado, de olhos abertos e morto. Não havia mancha de
sangue nos buracos das balas. Só na marca da corda de seu pescoço escorria sangue.
Ninguém mexeu no corpo. No dia seguinte o corpo desapareceu. Ninguém nunca mais
soube de nada. – Parecia que uma praga caiu sobre a cidade. A cada mês, a cada
ano famílias e famílias iam embora. Hoje a cidade morreu. Aqui não se vê
alegria, ninguém brinca ninguém canta. Dizem e eu posso afirmar que a noite
sempre está lá no banco da praça, o mesmo amarelo, Judas da Galileia. Fica lá
hora sem se mexer. De vez em quando parece que se ouve um tal de Rataplã
cantado com voz rouca.
Ela se calou. Olhei para a praça. No banco amarelo vi um vulto. De
uniforme caqui e chapéu de três bicos. Assustei-me. Sai correndo em direção à
praça. Precisava ver de perto. No banco não tinha ninguém. Voltei e ouvi
baixinho alguém cantando o Rataplã! De novo não vi ninguém. Dormi pensando em
tudo aquilo. No dia seguinte Joel Boca Torta arrumou minha vespa. Parti sem dar
adeus a ninguém em Galileia. Nem a Dona Inês. Perguntei por ela ao menino
porteiro. – Minha mãe morreu há muito tempo ele disse. Aqui só minha Vó e minha
Tia. Falar mais o que? Ainda bem que fiz bons negócios em Tainhomim. Nunca mais
voltei em Galileia. Outro dia procurei no mapa. Nada. Olhei no Google, nada.
Mas acreditem, havia um Judas da Galileia. Lá constava que era Escoteiro no
céu. Foi perdoado e agora faz parte da tropa do além. Deus me livre. Que ele
seja feliz e não venha à noite cantar para mim o Rataplã!
“Se no
passado não crucificaram “Judas” porque hoje fazemos isso com nossos irmãos”?