Lendas escoteiras.
Rosas brancas e perfumadas para
Dona Noêmia.
Ela morava bem no final da minha rua. Sua casa tinha fundos para o Rio Mimoso.
Lembro que no final da cerca havia um belo pesqueiro. Mas ninguém tinha coragem
para pescar ali. No quintal havia pés de manga, goiaba e chumaços de pés de
cana Caiana. Na frente de sua casa centenas de rosas brancas. Só rosas brancas.
Porque não outras cores ninguém sabia. Enfrentar o olhar de Dona Noêmia? Nunca.
Um medo danado. Não era só eu e sim a cidade inteira. Morava sozinha, acho que
tinha mais de setenta anos, não sei. Diziam que era viúva, mas ninguém conheceu
seu marido. No Grupo Escolar Mascarenhas de Moraes ela era a diretora. Ali
ninguém dava um pio. Respeito é bom e eu gosto ela dizia. Todos entravam em
silêncio e saiam calados. Onde ela passava se fazia silencio. Alguns adultos
diziam – Boa tarde Dona Noêmia. Ela olhava e seus olhos pareciam sair chamas de
fogo.
A escoteirada passava longe. Os lobos endiabrados ouviam sempre da Akelá Maísa
– Querem que chame Dona Noêmia? Era uma maneira de assustar a lobada
indisciplinada. Quem fala muito paga pecado, assim dizia minha mãe. Chefe
Onofre naquele sábado disse que infelizmente ia mudar de cidade. Estava
tentando achar alguém para ficar no seu lugar. A tropa ficou chorosa. Todos
gostavam dele. A semana inteira o comentário correu em todas as patrulhas.
Fazia-se reunião na Touro, nos Morcegos, na Águia e durante o dia na loja do
Martinho. Seu filho da Raposa trabalhava com ele. – Quem seria o novo Chefe?
Será o Nonato pipoqueiro? O Sacristão Isaias? Ou o Professor Clementino?
Ninguém sequer imaginava. O jeito era esperar o sábado.
Interessante, uma hora antes todos estavam na sede. Nem nos cantos de Patrulha
foram. Estavam a espreita na porta da sede, no portão e vi dois apinhados em um
abacateiro enorme olhando a rua da sede. Chefe Onofre chegou sozinho dez
minutos antes do horário. Chamou para a bandeira. Ninguém com ele. Um
frenesi corria de um para o outro. Depois do cerimonial fizemos um jogo
estupendo. E assim a rotina da reunião continuou. Até esquecemo-nos do Chefe
novo. Quem sabe ele desistiu e vai ficar conosco? A surpresa veio no
arreamento. – Chefe Onofre assumiu uma pose de “pobre coitado” e apresentou o
novo chefe. Ou melhor, a nova Chefe. Dona Noêmia! Incrível! Ninguém estava
acreditando. Ela chegou séria com seu cabelo branco amarrado em um coque, um
chalé em cima de uma blusa de manga comprida marrom, uma saia azul simples
abaixo do joelho e um sapato aberto em cima de uma meia fina que parecia tirada
do fundo do baú. Nunca em minha vida olhei para Dona Noêmia. Aquele foi à
primeira vez. Um medo danado. Era magra. Magra mesmo. Um palito em pé. Alta
pelo seu porte. Nariz afilado pontiagudo, uma boca pequena e entre o nariz e a
boca um bigode ralo.
A cidade em peso não acreditou. Ninguém acreditava. Ela só disse oi e que nos
veríamos na próxima reunião. Bragg! Que medo. Achei que ninguém ia aparecer na
reunião. Até “sapo de fora” estava lá para ver. Ela chegou. Deus do céu! De
uniforme caqui calça curta acima das canelas secas, sem o lenço e um chapéu que
parecia ser maior que sua cabeça. Dirigiu o cerimonial com perfeição. Depois
foi até ao meio da ferradura, fez a saudação, disse a Promessa colocou o lenço
e virou para tropa dizendo – Confiem em mim como eu irei confiar em vocês. Foi
o início. Chamou os Monitores. Falou com eles por cinco minutos. Vou dizer uma
verdade foi a melhor reunião de tropa Escoteira que já participei. Onde ela
aprendeu? Era Escoteira? Onde? As mulheres não só eram autorizadas na Alcatéia?
Um mistério.
Dois anos com a Chefe Dona Noêmia. Ninguém tirava o dona. Um medo danado. Mas
aos poucos fomos aprendendo a admirá-la, a gostar dela. Uma noite em um Fogo de
Conselho ela nos contou uma bela história. De uma menina perdida cuja mãe
morrera e ela não tinha ninguém. Sua luta, sua vontade em acertar, criou em
redor de sí uma aureola de rigidez, para que ninguém pudesse aproveitar dela.
Uma história linda e triste. Só mais tarde é que a história se explicou para
mim, era a história dela. A tropa passou a amar a Chefe Dona Noêmia. Todos
tinham a maior admiração. Antes poucos sorrisos agora em profusão. A cidade não
entendeu nada. Ainda no Grupo Escolar e entre seus alunos hoje crescidos o medo
existia. Na tropa adorada pelos escoteiros.
Dois anos e quatros meses de felicidade na tropa Escoteira. Cheguei a tirar
minha Primeira Classe. Pensava triste quando fosse passar para os seniores. Não
queria. Mas sabia que não podia continuar com quinze anos. Um sábado a Chefe
Dona Noêmia não apareceu. Preocupação geral. Nunca faltou. Toda a tropa
resolveu ir ver o que ouve. Fomos juntos a sua casa. Vinte e oito meninos Escoteiros
singrando a Rua Dom Pepino. Medo de bater na porta. Mas eu fui. A porta estava
encostada. Tremendo abri. Chefe Dona Noêmia caída no chão. Ainda respirava.
Pedimos ajuda. Levada ao hospital foi constatado ataque cardíaco. Ficou entre a
vida e a morte dois meses. Na tropa não sabíamos o que fazer. A Corte de Honra
se declarou em sessão todos os sábados. Numa quinta Chefe Dona Noêmia se foi.
O escotismo para mim nunca mais foi o mesmo. Mesmo nos seniores uma saudade
“danada” de Chefe Dona Noêmia. Ainda lembro até hoje o mutirão que fizemos a
procura de rosas brancas em toda a cidade para suas exéquias. Nunca vi tantas
em seu tumulo. Todos os escoteiros acharam que eram suas preferidas. Ate hoje
uma vez por mês ainda vou lá. Em frente ao seu tumulo coloco um buquê de rosas
brancas. Em minha mente vem a frase do poeta: - “O que sinto por você é tão delicado como pétala de rosa
branca desabrochando ao luar”.
Dou um sorriso. Na minha mente faço uma oração. A única que aprendi e que me
disseram ser Escoteira.
"Senhor, ensina-me a ser
generoso, a servir-te como mereces, a combater sem temor das feridas, a dar sem
contar, a trabalhar sem descanso. A sacrificar-me sem esperar. Outra
recompensa, que há de saber que faço a tua santa vontade”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário