Crônicas de um Velho Escoteiro.
Minha linda Capa Negra e o
Orvalho caindo lá do céu.
¶ O orvalho vem caindo, vai molhar o meu chapéu
e também vão sumindo, as estrelas lá do céu...
e também vão sumindo, as estrelas lá do céu...
Recebi um recado do meu Avô. Para ir a casa dele urgente. Não éramos muito
chegados, mas ele não pedia mandava. Lá fui eu naquela tarde cinzenta. Parecia
que ia chover. Entrei me ajoelhei e beijei sua mão pedindo a benção. Ele me
olhou rápido e virou os olhos para outro lado. – Tome esta capa. Foi do meu pai
e vem de geração em geração. Seu pai não quis mesmo dizendo da importância que
ela teve. Danado de filho o seu pai! E não diga nada. Pode ir embora. Sua Vó
Cecilia veio ao seu encontro. Meu Avô se calou. Já entendia ele. Mesmo com onze
anos. Peguei a capa e a levei para casa. No meu quarto a coloquei. Ficou
grande. Arrastava no chão como se fosse o padre Zózimo que usava suas batinas
compridas na igreja nas missas de domingo.
Minha mãe disse que podia fazer a bainha. Tinha lido que os escoteiros usavam
uma manta nos Fogos de Conselho. Minha capa poderia ser uma manta. Nos nossos
nunca usamos. Mas eu podia ser o primeiro. O Chefe Calango me explicou que se
costuma colocar os distintivos que a gente ganha de outros grupos ou distrito
nela. Disse que assim muitos iriam saber que quem estava usando era um
Escoteiro acampador e viajado. Bem, lembrei que tinha cinco. Vamos lá. No
primeiro acampamento, quando chegou à noite do fogo do conselho coloquei a
capa. Vi que ela se mexia muito nos meus ombros. Sempre escorregando e caindo.
Em casa quando a
retirei da mochila ela falou baixinho. – Escoteiro! Posso falar com você?
Nossa! A capa falava! Não entendi nada. Mas ela me disse que só podia ser usada
durante o dia. Estava boquiaberto. - Você fala? – Claro, seu avô não lhe falou?
Puts! E agora? – Gaguejando perguntei por que só durante o dia. Preciso mais de
você a noite. – Não dá durante a noite, me desculpe disse ela. Tenho alergia e
eu e o Orvalho não nos entendemos. – Você e o Orvalho? O que tem ele? Você o
conhece? – De longa data disse. Acho que foi por volta de 1920. Meu dono resolveu
me deixar pendurado em um varal e o Orvalho começou a cair, de leve e depois
mais forte, frio, insensível me molhando e comecei a tossir. Pedi para ele
parar e ele riu. Peguei uma gripe e fiquei mal um ano!
Fiquei deveras preocupado. Eu adorava o
Orvalho. Gostava de senti-lo molhando minha face, a cair em mim de leve e era
um bálsamo em minhas atividades escoteiras noturnas. Quantas e quantas vezes
ele e eu convivemos pacificamente em acampamentos distantes, em serras e campinas,
em colinas verdejantes? Quantos versos eu fiz e quantos poemas e canções eu
dediquei ao Orvalho? Quantas histórias de amor foram feitas entre dois
namorados e o Orvalho “caindo?”. Não sabia o que dizer e o que fazer. Mas pelo
sim pelo não resolvi tomar uma decisão. – Capa Negra, no próximo acampamento
você vai comigo. Eu, você e o Orvalho e juntos vamos fazer uma conversa ao pé
do fogo, e cada um terá direito de falar e reclamar um do outro. Quem sabe
chegaremos a uma conclusão?
E assim foi feito. Resolvi que a conversa ao
pé do fogo deveria ser feita altas horas da noite. Longe da barraca e dos meus
companheiros de Patrulha. Escolhi o Vale da Redenção, onde vivem os Beija
Flores Coloridos, os bem-te-vis cantantes, ás águias de rabo vermelho a voar no
Pico da Luz. Lá seria um bom lugar. No caminho o Orvalho nos seguia de cabeça
baixa. Molhava a relva e se deliciava com a lua cheia mostrando que ele era uma
brisa leve e fresca e não poderia fazer mal a ninguém. – Chegamos, sentamos a
moda índia. - Orvalho disse, vamos conversar. – Tudo bem Escoteiro. Já sei de
tudo. Uma noite ouvi você conversando com a Capa Negra. Nunca pensei em fazer
mal a ninguém. À noite e a madrugada são minhas companheiras e sabem como sou.
Os namorados me adoram. Os escoteiros quando estão jornadeando ao luar em uma
montanha gostam do meu frescor. E quando eu estou caindo o vento para de
soprar, pois sabe que minha brisa vai encantar os pássaros noturnos e servirá
de deleite para matar a sede dos insetos que voam ao meu redor!
Vi que a Capa Negra estava chorando. – Orvalho ela disse. Perdão. Fui egoísta.
Só olhei o meu lado. Esqueci que meu dever é proteger o Escoteiro. Juro que
nunca mais irei reclamar e o Escoteiro pode contar comigo sempre! – Bela Capa,
linda Capa, se já a amava agora muito mais. Voltamos para o acampamento
cantando Noel Rosa – O Orvalho vem caindo, vai molhar o meu chapéu, e também
vão sumindo, as estrelas lá no céu...
E eu e a minha bela Capa Negra
vivemos por muitos e muitos anos. Sempre foi minha amiga e companheira. Ainda
ontem abri meu baú mágico de minhas lembranças escoteiras. Lá estava ela,
sorrindo, me esperando, pois sabia que eu iria colocar ela no sol, para não
mofar e um dia quem sabe, voltar a viver comigo em um delicioso acampamento em
uma noite de luar junto ao Orvalho caindo lá do céu!
Somos gotas de orvalho
que no chão vivem a bater
fazendo nascer à flor
que mais tarde será você!
que no chão vivem a bater
fazendo nascer à flor
que mais tarde será você!
Boa noite, uma linda reunião e muitos sorrisos amanhã!
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