Lendas Escoteiras.
Uma história baseada em fatos
reais.
Ariranha, o Cão Lobo
inesquecível.
Nunca esqueci esta história. Ficou marcada em meu coração pra sempre. Ainda era
Escoteiro lá pelos idos da década de cinquenta quando conheci Ariranha. Seis dias
para ser exato convivemos juntos em um acampamento de tropa na Mata do Quati.
Não dá para esquecer, pois foi nossa segunda Olimpíada Escoteira, e a cada ano
elas marcavam época. Idéia do Munir, um Pioneiro meio afastado do grupo. Chefe
Jessé relutou, mas a Corte de Honra achou a ideia esplêndida. Era uma Olimpíada
diferente. Sempre acampávamos em uma clareira próxima ao Rio do Morcego, onde
se avistava a bela cachoeira do Sonho. Na época da Piracema era um espetáculo
ver os peixes tentando subir nas corredeiras e pulando sobre as pedras. Se
podia pegar com a mão.
As provas eram somente de atividades aventureiras e técnicas. – Subir em
árvores de seis metros de altura com tempo marcado – atravessar o rio nadando
em dez minutos ida e volta (60 metros). – Fazer vinte e cinco nós escoteiros ou
de marinheiro em seis minutos de olhos fechados. – Deixar-se cair da cachoeira
(oitos metros) em um tambor vazio de duzentos litros. – Semáforas e Morse uma
prova onde tínhamos grandes sinaleiros. – Fazer um café e pão do caçador em
oito minutos. – Uma fogueira em dez minutos que durasse quarenta minutos sem
alimentar. – Cortar uma tora de madeira de oito polegadas em oito minutos
usando só um facão. – Trilha e pista de animais e tantas outras que deixaram
saudades.
O
caminhão da prefeitura nos deixou pela manhã na trilha da mata que levava ao
Rio do Morcego. O resto era a pé. Apenas quatro quilômetros. Adorávamos este
acampamento anual. A Patrulha se preparava meses antes. O troféu pela vitória
alcançada não eram medalhas. Podia ser uma faca Escoteira, um canivete Suíço,
uma bússola, distintivos de lapela com flor de lis, moedas de boa ação. Prêmios
que ambicionávamos muito. Cada Patrulha tinha o seu campo separado da outra
mais ou menos por quarenta metros. As pioneiras eram feitas no primeiro dia,
pois no segundo as Olimpíadas começavam.
Lembro que estava fazendo uma fossa para o WC quando avistei Ariranha. Notei
algum diferente. Parecia um lobo Guará, mas tinha o pêlo meio amarelado e quase
sem rabo diferente do lobo cinzento que conhecia bem. Quem sabe era um cruzamento
com um vira-lata qualquer com alguma loba perdida por aí. Ele nunca sentava.
Sempre em pé, orelhas para o alto e olhando sem piscar o que fazíamos. Quando
me aproximava ele dava alguns passos para trás e parava. Durante todo o dia ele
ficou lá, próximo ao nosso campo de patrulha. Acho que foi o Pedregulho o
intendente quem lhe deu o nome de Ariranha. Porque não sei. À noite quando
íamos dormir ele ficava na entrada do pórtico com se fosse velar nosso sono.
Pela manhã impreterivelmente lá o encontrávamos.
Durante a
realização das provas da Olimpíada, ele ficava muito próximo a mim. Uma vez
entrando na mata a procura de uma pista pisei em falso e um enorme corte se fez
em minha perna bem abaixo do joelho. Ele veio até a mim pela primeira vez e
lambeu onde o sangue escorria. Parou na hora. Quando passei a mão em seu pêlo
saltou de lado e tomou distância. Uma noite acordamos com seus latidos. Latia
para uma enorme cascavel que impreterivelmente invadiria nosso campo. Ele a
espantou. Outra vez seus latidos foram mais altos e foi à tarde quando
estávamos tomando banho no córrego da Lagartixa. Desta vez era uma Onça parda.
Fugiu com seus latidos.
Durante os seis dias de campo, Ariranha lá permaneceu. No último dia no
cerimonial de bandeira Ariranha se colocou ao meu lado na ferradura. Não
esperava por isto. Ele não me olhava. Seus olhos estavam fixos na bandeira
Nacional. Devia ter assistido todos os cerimoniais que aconteceram. Enquanto
ela farfalhava ao sabor do vento e descia dos céus seus olhos acompanhavam.
Quando as patrulhas deram o grito ele ficou no meio e pela primeira vez se deixou
abraçar. Foi um espetáculo comovente. Todos os escoteiros das demais patrulhas
vieram também abraçá-lo, pois já era querido por todas as patrulhas. Ao
partirmos ele nos acompanhou até a estrada onde pegaríamos o caminhão da
prefeitura. Ao subir na carroceria ele estava lá me olhando. Abanando o pequeno
rabo ele deu um uivo enorme. Gritante e choroso. Como se fosse um lobo de
verdade se despedindo para sempre. Ainda nos acompanhou por alguns quilômetros,
mas depois sumiu em uma curva no meio da poeira da estrada.
Foi um retorno triste e comovente. Todos os Escoteiros tinham os olhos
vermelhos e um silêncio geral na carroceria do caminhão. Eu voltei para casa
chorando. O uivo de Ariranha me marcou muito. As lembranças ficaram gravadas
para sempre. Chorei por vários dias. Nunca me perdoei por não trazê-lo comigo,
mas meu pai disse que ele era da floresta, nunca iria se acostumar na cidade.
Chamei o Romildo na semana seguinte e fomos até lá de bicicleta. Rodamos e
rodamos e nem sinal de Ariranha. Nunca mais o vi, mas nunca mais o esqueci.
Ariranha ficou marcado em nossa Patrulha Lobo. No nosso livro de Atas ele teve
um lugar especial. Não sei se é fácil explicar como se ama um cão/lobo em
poucos dias e nunca mais o esquece. Não sei mesmo. Até hoje me lembro de
Ariranha com saudades. Histórias são histórias, tem umas que marcam, tem outras
que ficam gravadas em nossa mente para sempre!
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