Lendas
Escoteiras.
“Flor
do Campo”. O sonho não acabou.
Faz tempo, muito tempo! As
lembranças ainda se mantem viva. Não dá para esquecer. Tudo aconteceu quando era
Chefe de um Grupo Escoteiro. Um grupo simples, amigo, fraterno nem grande nem
pequeno, mas onde todos sentiam a liberdade de estarem ali com suas ideias e
suas sugestões. Era um bairro simples, de classe media e muitas favelas já
urbanizadas próximas. Habitava este
mundo escoteiro vivendo cada dia, cada hora, cada minuto de minha jornada
Escoteira sem contagem regressiva. Eu sabia de cor o nome de todos os chefes,
pioneiros, guias e seniores, escoteiros e escoteiras, lobinhos e lobinhas. Sem
contar muitos pais que foram e são até hoje meus amigos.
Lembro que foi em um sábado sem
sol, uma chuvinha fina e como sempre estava no pátio a observar a escoteirada,
a lobada, pois cada reunião tinha alguma coisa que eu procurava manter na mente
como se estivesse marcando o tempo em meu coração. Eu ainda não tinha notado a
sua presença. Depois me disseram que vinha sempre. Ela não tinha mais que dez
ou onze anos. Magrinha, vestida com simplicidade, sempre com a mesma roupa, um
sorriso ingênuo e cativante, mostrava ser uma jovem que prezava sua humildade
na apresentação pessoal. Cabelos castanhos compridos, com uma pequena trança pendendo
para frente, escondendo um pouco de si própria. Seu semblante era de uma
atenção cautelosa, a me olhar de soslaio, vi que não tirava os olhos da tropa
das escoteiras.
Notei que seus sentidos
eram os mesmos das meninas que ali brincavam, riam, cantavam e vi que ela de
longe sonhava em ser uma delas como se estivesse em uma patrulha participando. Vi
que sempre ficava confinada em um canto do pátio e nunca se aproximava. Foi em
uma promessa de uma Escoteira que vi seus olhos brilharem. Quando entreguei o
lenço vi que seus olhos se encheram de lágrimas. Tinha certeza que em seus
sonhos ela estava lá fazendo a promessa e sorrindo com aquele uniforme que
admirava. Sentia sua força em se transformara em uma delas em pensamento. Para
ela era um momento prodigioso que transpunha no seu imaginário, forçando entre
o sonho e a realidade uma transferência física, como se estivesse ali com a mão
direita em saudação e acreditando que de agora em diante sua vida seria outra. Uma
ilusão.
Vi com surpresa sua
expressão quando a chefe perguntou se ela poderia participar de um jogo. Das
três patrulhas duas estavam com sete e uma com seis. Completar seria mais
lógico para haver igualdade de competição. Acreditem, não tenho palavras para
descrever sua alegria. Incrível! Nunca vi ninguém participar de um simples jogo
com tanta energia e vibração. As outras escoteiras não observaram nada. Nem a
chefe. Ao final do jogo um agradecimento e vi que ela conseguiu ficar mais
próxima, ouvindo, tentando entender o que as patrulhas faziam, com cabos
pequenos, bandeirolas, e uma parafernália de papeis e desenhos misteriosos.
Um dia me aproximei. -
Porque não ser uma delas? Eu perguntei. Ela não me respondeu. Seus olhos de
novo encheram-se de lágrimas e saiu correndo. Não entendi. No sábado seguinte de
novo fiz a pergunta. Saiu correndo de novo. Pedi então a Chefe das Escoteiras
que conversasse com ela. Foi então que fiquei sabendo de seu padrasto. Homem
mau, não trabalhava e exigia tudo que sua mãe ganhava como faxineira para beber
e gastar o único sustento da casa. Contou a Chefe que tentou falar com sua mãe
e ele para participar e quando insistiu de novo levou uma sova. Contou que não
chorava, nunca chorou. Era ponto de honra para ela. Não fora a primeira vez e
nem seria a última. Sua mãe sabia como era, mas o medo fazia com que se
mantivesse calada. Parecia historia da Cinderela sem sapatinhos de cristal e
com um final triste sem o príncipe encantado. Nada podíamos fazer. É impossível
o escotismo ajudar neste processo, pois ele depende e muito dos pais. Ela
continuou a vir e assistir as reuniões.
Um dia observei a porta da sede
um homem dos seus 50 anos, meio grisalho, estatura mediana e cá prá nós,
semblante arrepiante uma cicatriz no queixo, vestido de maneira desleixada com
um olhar nem tanto amistoso. Dirigiu-se ao meu encontro e levantou levemente
sua blusa mostrando estar armado. O nervosismo apareceu e mesmo tendo alguma
experiência no assunto, não gostei da maneira com que ele se apresentava.
Perguntou onde estava “Flor do Campo” e eu disse não saber quem era. Com o dedo
em riste disse que ela queria ser escoteira, mas que ele nunca a deixaria
entrar. – Vocês são uma turma de riquinhos. Agora ela fugiu de casa moço, e se
até amanhã não aparecer o senhor é o culpado, falou cutucando o revolver na
cintura. Fiquei sabendo depois que ela jogou uma chaleira de água fervendo em seu
rosto quando ele tentou agarrá-la e saiu correndo. - Olhe moço, ele continuou, ela fugiu de casa
sem nada levar. Procurei por ela em todo o bairro e nada.
Fiquei calado, não era
hora e nem adiantava retrucar. Os diretores e dois pais que permaneciam na sala
estavam atemorizados e sobressaltados. Claro que eu também estava espantado e
assustado. Não era nenhum herói, de karatê e de luta livre não entendia nada.
Pelo sim ou pelo não, ele saiu me ameaçando que se ela não aparecesse até o dia
seguinte, alguém iria pagar caro com a vida. Durante dias fiquei pensativo sem
saber como agir. No sábado seguinte, ainda preocupado, já que o padrasto de “Flor
do campo” podia aparecer, tivemos uma bela surpresa. A mãe dela surgiu
juntamente com ela e educadamente se apresentou. Chorando vez sim vez não, contou
sua história, salpicada de novas informações. Ele era um bandido perigoso e
fora morto na tentativa de um assalto a banco. Olhei para “Flor do Campo” cujo
sorriso era contagiante. Acreditava que agora seu sonho em ser Escoteira seria
real. De um padrasto violento via que seu mundo mudou para melhor.
“Flor do Campo” foi aceita.
Nunca vi uma jovem como ela. Sua promessa foi inesquecível. Chorou de alegria
como se estivesse vivendo um conto de fadas. Ficou conosco por 6 anos. Foi
escoteira e guia. Conseguiu a primeira classe e como guia alcançou a eficiência
II. Sempre era a primeira a chegar e a última a sair. Ela tinha orgulho do seu
uniforme e todos que há conheciam tinham por ela uma grande afeição e ternura.
Quando fez dezoito anos voltou para a terra onde tinha nascido. Sua mãe recebeu
uma pequena herança de um sítio de sua avó. Na rodoviária nos despedimos com a
Canção da despedida. Muito choro, mas todos orgulhosos de “Flor do campo”. Cinco anos depois, uma surpresa - recebemos na
sede a visita dela. Desta vez acompanhada de seu marido e dois filhos.
Apresentou-nos a todos com orgulho. Estava a passeio e contou que era Akelá de
lobinhos em um Grupo Escoteiro na cidade onde morava. Sorria nos encantando a
todos.
Havia ainda muitas jovens que
eram de sua época. Uma grande confraternização e lembranças amigas. De vez em
quando recebo uma cartinha e agora com o e-mail sempre solícita troca de
conceitos e programas, pede sugestões, envia fotos e vai contando de uma
maneira amável e jovial o dia a dia do seu Grupo Escoteiro. Ela mesma confirma que
vai admiravelmente bem na trilha do sucesso. Eu um Velho Escoteiro tenho um
grande orgulho em ser amigo dela. São coisas impossíveis que se tornam
possíveis pela obstinação de um movimento incrível. Sempre digo que o escotismo
é uma filosofia, uma maneira de sorrir e viver feliz para sempre!
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